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terça-feira, 24 de novembro de 2009

Ipanema, PR, 15 de novembro de 2009



Quando eu era pequenina,
quase do tamanho de meus pesadelos,
passávamos os verões de férias na praia.

Íamos todos juntos: tios e tias, primas, irmão que ainda era um só, às vezes até vô e vó.
E entre areias nos pés do chuveiro e almoços coletivos, lembro-me das disputas para carregar o pedaço de madeira pertencente a base do guarda sol
(isso lá deve ter um nome)
que fazia riscos no chão do mar à calçada, linhas para caso alguém se perdesse – era o que pensava minha cabeça fértil.
Na praia, tudo era motivo de festa, de churrasco e de brindes.
E a alegria de cada um era compartilhada pelos demais.

Nossos castelos de areia geralmente eram feitos em grupos, competições por vezes havia, e lembro-me da delícia que era construí-los ao lado da tia Kelly ou mãe,
torres pontiagudas, portas por todos os lados.

Na praia eu e o Guto – meu irmão – costumávamos brincar juntos, correr por entre as dunas e rolar, fazendo corpos à milanesa. E as disputas eram para ver quem tomava banho primeiro, chegando da praia, com a pele ‘peguenta’.

O percurso da calçada à beira do mar era longe, como daqui à África.
Zombador, o sol fazia-nos sambar na areia fofa e quente dos finais de manhãs.
Mas nada era mais gostoso, gritarias, picolés premiados, raquetes, desenhos na areia, pulo das ondas, costelinhas de porco do tio Paulo.

Vez ou outra mãe entrava na água: “tá na hora de sair!”
“Ahhh, mãe, eu nem tô com frio..”
“Tá sim, vem!”
Era minha boca roxa que sempre me denunciava.

Agora estou em outra praia, sentada na areia quase branca. Ali na frente crianças brincam, e me vejo na menininha magrela que corre da onda baixa.

Cheguei ontem aqui, sol forte, andando e pegando ônibus metropolitano cheio com meus quilos de bagagem. Bora Bora, Pizzaria e Choperia, bonita, ampla e bem cuidada, onde está Marcelo? Era de tarde. Pode fazer ali, ou ali, ou ali.. Tudo certo, quer ir ao hotel? Quero. Preciso de um banho para secar o suor.
À tarde vi movimento no calçadão, e se apresentasse a palhaça e depois o Mundo Miúdo? Mas aqui tenho apoiadores, melhor perguntar. Faz o Mundo Miúdo, vai ter banda agorinha depois do jogo de futebol, a música é alta, vai cobrir você. “Vai, Curitiba, vaaaaaaaaaiii.. ser campeão!!” – coro enquanto eu comia a pizza de tomates secos e o suco de pêssego, delícias oferecidas, posso levar o restante para o hotel? Podia. Lá peguei a caixinha e voltei, montei. Delícia apresentar lá! Crianças, adultos, posso contribuir com o trabalho? Estão anunciando no microfone que você aceita contribuições. Se estão dizendo é porque posso, tirei o chapéu vermelho da bolsa colorida.

Como estava gostoso de ficar, fui ficando. Algumas crianças assistiram mais de quatro vezes, saíam e voltavam à fila longa, ficando horas comigo.
Fui para o hotel feliz com a noite.


Paranaguá, PR, 14 de novembro de 2009



As coisas acontecem em uma velocidade tal que nem consigo relatá-las.
Hoje pela manhã acordei e fui tomar café. Como era uma mesa grande para todos, fui conhecer Cláudio, um homem branco, pouco gordo, de olhar baixo e timidez aparente com seus trinta e poucos ou quarenta anos. Trabalha com pintura de navios, e está aqui também de passagem. Conversamos de previsões do tempo a papo de mães, e quando desci para perguntar se a voltagem aqui é 110V ou 220V, veio a pergunta: “quer conhecer o iate?” Fui, sempre quero conhecer lugares. E fomos caminhando à beira mar.
Chegando lá barcos requintados, e conversando falou de Cotinga, uma ilha ali pertinho. Olhei no meu mapa, mas não estava. Falou com o responsável de lá que já perguntou quer conhecer? Fulano, leva ela lá. Eu falei espera.. agora? Ele disse não quer? Mas quanto é? Não, é de graça.
É de graça? – pensei cá com minha maleta.
Cláudio depois contou que é assim, que a comissão ali é alta e fazem de tudo para agradar, conversando e conhecendo não é difícil.

Daria tempo de ir e voltar, ainda arrumar as coisas para sair do albergue, fui. Eu e o rapaz que guiava, só. Cláudio emprestou-me o repelente para as mutucas danadas e ficou arrumando o barco que pintava.
Lindas paisagens, com barcos cheios de turistas aos lados.
Chagamos lá e perguntei onde fica o povoado? É ali, pode ir que eu espero.



Caminhando entre embarcações antigas, estradinha de chão ao lado do mar tranquilo com barquinhos de pesca a bailar para os lados, veio-me, como já havia ocorrido, a pergunta crucial: Minha Nossa Senhora do Destino Incerto, como vim parar aqui, lugar tão lindo, tão rápido e tão ao acaso?
Casinhas à beira do mar, bom dia, contei um pouco de minha história e se havia interesse, sondei. Aqui tem poucas crianças, duas ou três, o ideal seria você ir ali, depois do morro, tem uma tribo de índios, lá tem muitas crianças, tem a escola. Pelo mar vai também, é mais fácil chegar.
Agradeci e voltei, e na beira do mar com a embarcação parada conversei com um senhor de lá, o quê acha? Poderia falar com a professora, ela vem segunda, hoje é sábado. Falei com o rapaz que me trouxe, a gente trás, te deixa lá sem problemas, é só pedir autorização a Cristian, é tranquilo.


Por fora tudo certo para ir e ver como é, tentar. Por dentro de mim é que não estava.
Quando aparecem programas de TV de tribos indígenas, de visitantes brancos mostrando a vida de lá e se mostrando lá, sempre me pergunto se é benéfico tal aproximação. Se não é melhor deixar assim, um povo tão perseguido com seus costumes e rotinas, para que as próximas gerações não percam o que lhes é mais belo culturalmente, o que torna de cada região a sua, de cada povo e costume os seus.
Ao mesmo tempo, isola-los, se é possível ainda haver o isolamento total por aqui, não é também uma forma de extingui-los? Mostrar sua cultura não é valoriza-los?



Não sei, voltei para o Iate Clube cheia de interrogações. Falei com Cristian, que me autorizou a ir segunda feira, mesmo horário da professora. Agradeci a Cláudio, três beijinhos, senti que, se homem eu fosse, não teria conseguido nem metade do que consegui. Mas como foi tudo espontâneo, saí de leve e voltei para o albergue, onde estou agora a fugir do calor.


Arrumo minhas roupas e depois parto para Ipanema. E, no banho quente, sinto junto ao morno um filete de água gelada caindo em minhas costas desnudas. Serei o filete gelado na população quente?

Paranaguá, PR, 13 de novembro de 2009



Camping vazio, acordei e fui tomar café à beira da cachoeira. Bela noite de sonhos gentis! Pronta para outra, Seu Ely, quais os horários dos ônibus? Para Paranaguá, 9h. Neste fui.
Em Paranaguá, cidade grande, povoados atravessando o rio. Para o outro lado das águas que quero ir, por isso vim. Algum barco passa? Só vão particulares, bem caro. Querendo muito fui até a prefeitura, Fundação de Cultura, tem como conseguir parcerias? A passagem, só? Falei com o responsável, me enviou a outro responsável. Tudo sempre programado, não temos recursos, ladainha rotineira. Enviaram-me a Ipanema para outra responsável, pessoa mais possível de conseguir algo.
Achei Hostel, rede barata de hospedagem coletiva. Albergue internacional. Vale pela cozinha disponível, computadores e preço.

Na rodoviária vou/não vou, risco constante de gastos extras e parcerias poucas ou nenhuma.. Mas vou.

Chegando, Francisca, Marcelo, e então? Nada, sem verbas, fim de ano, blá. Marcelo deu uma ideia: por que não tenta o Marcelo – outro – da Choperia e Pizzaria Bora Bora, que tem hotel ao lado? Ligou. E este aceitou a troca, apresento o Mundo Miúdo e me dão hospedagem e alimentação. Eba, amanhã já sei onde vou dormir.


Na volta encontrei Dona Tereza. Não. Na volta Dona Tereza me encontrou. Com seus olhos azuis feito lápis de cor, perguntou-me esse número é 6 ou 2? É 6. Ah, é, foi o que achei, to meio ruim dos olhos. Dona Tereza falou do filho, é bo-niiii-to – contou esticando as sobrancelhas – mas não quer casar. Diz que ta bom assim, tem carro, emprego, casar para quê? E tem a outra filha, ela tem necessidades especiais. Já rodou o Brasil com a filha, atrás de médicos. Disse que uma vez foi para o Rio Grande do Sul, a filha pequena em um braço e uma sacola pesada no outro. Foi atrás do médico, o melhor na área, foi no endereço que tinha, a chácara dele. Chegou lá e ele disse que precisava fazer um bocado de exames na cidade vizinha. “Que jeito? Eram 13 km, e eu sem dinheiro e a pé, com a filha no colo?” O médico deu uma medicação lá e ela voltou. Sem os exames. E assim já foi para um monte de lugares, a minha filha já está bem melhor, graças a Deus! Graças a Deus e à senhora, né, Dona Tereza?!

Despedimo-nos perguntando os nomes uma da outra. Como é?? Genifer. Soltou um “fff” logo depois de tentar pronunciar, não conseguindo e dando risada da tentativa frustrada.
Voltei para Paranaguá, o albergue, soube da festa de Nossa Senhora do Rocio, padroeira do Paraná. Vou apresentar o Mundo Miúdo lá. E fui, peguei o ônibus para o centro, noite já era. Tem como voltar até meia noite de ônibus, é tranquilo.
Quanto é? No chapéu, você paga se achar que deve, quanto achar que deve, que o trabalho merece. Vieram alguns, um, dois reais. Aí veio um grupo de meninos. Rapazes pré-adolescentes, em bando. Quanto é? Falei o mesmo. Ficaram curiosos, um chamando o outro, e eu apresentando, eles hão de entender que é trabalho. Mas não. Os últimos três, um passando os fones aos outros, curiosos e momentaneamente atônitos, e antes de acabar a história saíram correndo para não pagar. Porra, que falta de consideração. Não quisessem ou não pudessem pagar falassem, apresentaria mesmo assim. Mas sair dessa forma, gritei um ‘vão pra porra’ bem alto, desliguei tudo e disse vou-me embora, já chega!
Aí veio mais um grupo, umas três pessoas, posso ver? Respirei fundo, pode sim. Mais alguns trocados e sorrisos.

Chegaram mais três meninos um pouco depois, mais novos que os outros, um catava latinhas. Pensei, parecem aqueles, mas não o são, não os tratarei como se fossem. Respondi as perguntas, mostrei os bonecos, perguntei, conversamos. Gostaram, trataram-me bem. Arrumei tudo para ir vou pegar o ônibus, 23h e 30 min já era. Vai com Deus, moça! Fiquem com Ele, e n’Ele, também, meninos.
Acabou-se minha sexta-feira 13.

Curitiba a São João da Graciosa, PR, 12 de novembro de 2009



Bom dia! Sejam bem vindos! Como vocês estão na cl_s_e ec_nôm_ca.. Ei, som, s__! – o senhor desistiu do microfone que falhava. Aí prosseguiu em voz alta: então, aqui não teremos guia turístico, sou eu em três vagões, então qualquer coisa me procurem, estou à disposição.

Começou a andar, o trem. Sim, novamente estou em um trem, tão bem dito o trajeto que espremi minhas moedas para terem filhas com rostos de José Maria da Silva Paranhos e Manuel Deodoro da Fonseca. E paguei um pouco a mais para chegar em meu destino pelos trilhos, a beira de precipícios. Belas paisagens de verde com tinta guache branca a cobrir de neblina os picos dos montes!


Entretanto, o que mais me chamou a atenção no trem foi o envolvimento das pessoas lá, dentro do vagão, ao compartilharmos sentimentos parecidos. Havia grupos definidos, e estes ficaram onde estavam, aparentemente nenhuma modificação. Mas os grupos menores e eu, grupo dos sozinhos, estes se agruparam, ajudando-se nas fotos, nos olhos arregalados a se empilhar nas janelas de vidro e nos gritos divertidos pela negritude dos túneis. E era sincero o riso conjunto. Trajeto longo de gostosuras.
Chegando, cidade de Morretes. E imediatamente a procura pela rodoviária, moça, onde fica? Muitos turistas. Muitos gringos. O ônibus sai às 13h 30min, meia hora aproximadamente até lá, o único do dia. Fui. O povoado: São João da Graciosa. Gracioso local, sem dúvidas. Mas região turística, há aqui uma rua só de restaurantes e hotéis, é tudo o que há. E a menina atendente do ‘Siri Cascudo’ puxou assunto, pesado isso aí, hein?! Pois é!

Aqui não houve recepção porque sempre se vêem rostos como o meu. E conversei com a menina, 15 anos, há quatro meses trabalho aqui. Deu-me dicas, deixei as coisas lá e tentei achar um local para ficar. Como há muitas pousadas e hotéis, ninguém ofereceu hospedagem em suas casas. E os preços como ou mais caros que os de Holambra: oitenta reais para uma noite. Não dá. Às 19h tem ônibus para Antonina, para Morretes não há mais hoje, vou para Antonina, então. É turístico também, mas maior, talvez haja mais opções.
Peso da noite mal dormida até Curitiba, de aqui não ter conseguido, sentada busquei soluções. Mas é difícil acha-las vendo assim, do e no interior. Nada de praças. A prefeitura não é aqui. Nem crianças. E há talas em meus olhos. Resta partir.


Ah, tem Seu Ely e Dona Rosa – disse Fernanda, a garota do ‘Siri Cascudo’, duas horas depois. Vai lá, eles tem um camping, explica. Fui, expliquei. Costumam cobrar 25 para acampar, mais 15 para emprestar a barraca. Mas me fizeram tudo por 20. Agradeci. Eu armando a barraca, veio Seu Ely com uma chave: fica na casinha, hoje a noite chove, melhor assim. Mesmo preço. Certo, desarmei e fui levar as malas.
Aqui tem uma cachoeira logo ao lado, e optei por tomar banho para me curar do suor do sono e desânimo acumulados de a pouco. Não há ninguém mais no camping, Seu Ely, a esposa D. Rosa, filho e eu. E os pássaros que ali em frente mergulham na água transparente a fazer, de peixes, caça. E os pássaros.

Agora tenho-me no quarto, e é o som de minha caixinha acoplada ao mp3 quem me livra do silêncio absoluto, integrado ao sussurrar contínuo das águas que segue ao longe como apelação de padres. As paredes aqui tem um verde quase marrom, há dois quartos e duas camas: uma de casal em um e outra de solteiro com colchões em cima do outro. Um fogão, divisórias internas do casebre de madeira clara com gemas de ovo pretas no centro, madeira de caixote. Cortinas de um tecido que une algodão a sintético, flores duvidosas de um roxo assustado. E tomadas. E chão de barro batido, tão batido que quebrou em alguns pontos. Pregos apontando para o alto. Bichinhos desenhando de sombra a lâmpada quente. Nenhuma porta, só a que se usa para o chegar e o partir. E há ainda uma rã que se escondeu debaixo da cama de casal, me fará companhia essa noite.

Arrumo meu material, aproveito as tomadas para carregar as pilhas que suspiram de fome. Como o pão que comprei na padaria e aproveito as geléias dos potes plásticos do hotel mais caro que fiquei: achei mesmo que seriam úteis, mais cedo ou mais tarde.

Vou dormir, saciar minha fome de sonhos

terça-feira, 17 de novembro de 2009

São Paulo, SP, 11 de novembro de 2009

APAGÃO EM SÃO PAULO, VISÕES DO ESCURO




Ontem estávamos em casa, sairemos às 22h e 15min, dá tempo de chegar, comprar o pequenino papel que deixa-me ir e de nos despedirmos. Ontem era dia de partida. Eram 22h 12min, tia Angela colocava os sapatos enquanto eu fechava a mochila, pronta para colocar nas costas. Pegaríamos o elevador, estamos no sexto andar, garagem, iríamos para rodoviária de carro. Se eu fosse de metrô provavelmente estaria dentro do mesmo àquela hora, sairia às 22h, tempo de andar.
22 horas e 14 minutos no relógio do microondas, olhei para ele e a luz começou a piscar. Olhei para cima, problema na tomada, o que há? Tudo se apagou.
Ficamos no escuro. Parada algum tempo à espera de uma solução imediata fiquei. Pouco depois pegava a lanterna deixada em local fácil para possível necessidade. E fui ao encontro dos tios e do cachorro, Boni, que ainda não apresentei, mas que sempre estivera presente.
Passamos muito tempo assim, creio que duas horas, mas os ponteiros correm diferente quando se está à espera.

Uma espécie de caos, não víamos o que nos rodeava, não sabíamos do que se tratava exatamente, esperávamos notícias dos telefones mudos. Soubemos por notícias de Salvador que havia muitos locais assim, e nos tornávamos cegos com nossa própria alienação – nada sabíamos considerando aquilo que sempre é se possível saber, com tantos meios de comunicação e tecnologia disponíveis.
Acompanhei de perto a preocupação dos pais pelo filho que havia saído – sim, há um filho por aqui – e não se tinha notícias; acompanhei de perto suposições de quem tenta ver através de uma visão imaginada, irreal ou restrita como toda visão.
Lembrei-me de sonhos passados. São os meus piores pesadelos, e os tenho com frequência. Acordo assustada sempre, a lembrar: eu tentando abrir os olhos e não conseguindo, tendo vestígios de visão e esfregando as vistas, em algum espaço/tempo determinado e com pessoas queridas ou não em volta, geralmente estes correndo, sem
que eu consiga alcançá-los ou acompanhar o que me mostram. Respiração forte me corrompe os lábios, penso acorde, acorde, sei que é sonho o desespero, mas em sonho temo ser verdade.
Aqui os sonhos e pesadelos vieram todos vestidos do negro da noite.

Agora assisti ao documentário ‘Janela da Alma’, enquanto espero a minha caixinha de som ficar pronta do conserto, que descobri ontem à noite, tentando sintonizar uma rádio, que não estava carregada,carregador queimou. Imagino se não tivesse visto, se viajasse com ela assim, chegando na praça do povoado, arrumando tudo, ligo o som e o silêncio me gelando a alma, deixando-me incapaz de apresentar. Sempre se pensa o bom do ruim, nem sei se é conformismo ou busca eterna, sei que pensei que bom que descobri aqui, pois arrumo antes de viajar.

Sim, mas não é disto que falava, era do documentário que vi antes do prato de macarrão. E lá havia muitos que falavam, relatos interessantes, e dentre eles um homem, meia idade, cineasta que não me lembro o nome. Mas posso defini-lo com outras características que não a que lhe fora dada ao nascer: ele era grisalho, pele branca, quando falava viam-se os dentes de baixo um pouco amarelados, barba e bigodes feitos, duas entradas no topo do rosto, titubeava, medindo as palavras em silêncios breves, não falava o português. Não guarda, ele, nessas características um nome inteiro? Era ele, enfim. E tinha óculos, contava que já usara lentes de contato, mas mesmo com elas colocava os óculos, fazia questão. Costume? Não. Ele precisava de uma moldura no olhar, achava demais o que via sem a armação, queria e necessitava selecionar mais o visto. Pensei em mim, como se faz quando se olha para fora. E no que escrevo dos lugares e pessoas, escolhas de um olhar que tanto vê, por fora e por dentro, e seleciona. Do olhar que se deturpa vendo as costas do que se enxerga; da visão que é sempre, e antes de tudo, suposição.

Ontem, no escuro, com a lanterna entre os dedos e a espiar as pequeninas luzes tilintando e fugindo pelas janelas dos prédios vizinhos, parecia que enxergava melhor, que havia intervalo para supor. Como dito no filme/documentário, um espaço para a imaginação tecer seus fios, criando novas histórias tão reais e irreais quanto as vividas.
Penso se o que escrevo é escuridão, ou fatias de luz a se alastrar para os prédios vizinhos. E não há nada de certezas em meus olhos cegos que tudo veem. Ou tentam, ou tentam.



RODOVIÁRIA DE SÃO PAULO (mesmo dia)

Experimentei, agora a pouco e por um longo tempo que se alastra, uma sensação estranha, que não esperava sentir em tal proporção. Tive vergonha de mim. De ter tanto onde estava.
Assistindo uma grande televisão com todos os recursos possíveis, comendo uma comida deliciosa, sentada em um excelente sofá, vendo um programa de culinária e cultura , discutindo sabores e despreocupada, me encolhi. Sabia que nada daquilo era meu. Da mesma forma, sabia que essas pessoas daqui tem o quê tem por mérito, trabalho duro e suado, nenhum berço de ouro e jamais ‘por cima de ninguém’. Mas também sabia e vi que há muito trabalho duro e suado nos locais onde passei, e que Dona Diu jamais conseguiria, por mais esforço que tivesse em sua terra, obter o que aqui há. Para ela, a glória foi conseguir água para beber e tomar banho, e dar de comer aos filhos.

Nunca gostei muito desse papo comunista. Aliás, todos os ‘istas’ me repelem, com suas verdades serradas. Também nunca fui revolucionária, e se participei de algum Grêmio de colégio ou D.A. foi para realizar eventos, peças de teatro ou festas. Nunca passou disto. Não sou eu quem levanta o braço direito com a mão apertada a berrar pelas ruas. E creio que não o farei. Mas mexeu comigo o que vi, e agora percebo.
Nem sei o quê fazer com isso, esse sentimento que me serra a garganta, só relato o que achava que não faria de maneira nenhuma nessas brancas páginas.

Mas o quê há?

O que tenho eu a fazer, ou pensar, ou ser?

UM POUCO DAS ENTRELINHAS DO VIVIDO

Há tanto que vivo e não escrevo, que não há tempo, nem memória, nem caneta por fora e por dentro. Muitos aprendizados, pensamentos passantes esclarecendo e escurecendo texturas, muito a ser contado e contaminado de versão. Mas não há como.

Queria falar dos conhecimentos do tio Mário, sobre a língua tupi guarani, o ‘PARA’, o ‘GUAY’, o ‘NAÍBA’. Queria falar do pequenino Anis da tia Angela, usado na receita para combater a gripe H1N1, levo comigo (e sei de alguém que vai adorar isso). Das receitas da tia, dos padres da capela que visitamos, do Tuco, o filho que nem borrei palavras, que me levou para uma cobertura com vista panorâmica para o mar de prédios. Do Boni, cachorro destruidor de almofadas. Da apresentação do Mundo Miúdo em São Paulo, para pessoas especiais. Tanto, tanto. Queria falar mais dos sentimentos que tenho e não entendo, do que me é confuso e breve ou do que levo comigo sem saber. Mas hão de ser ditos? Deve aparecer, para alguém, toda a imensidão da lua, suas costas escondidas? Consegue, ela própria, enxergá-las?

sábado, 14 de novembro de 2009

MÃE, TÔ INDO (FASE 2)

A passagem por Minas Gerais.

São Paulo, SP, 10 de novembro de 2009



Hoje sonhei com ‘A Humaitá’
Com todos os integrantes
Ray, Pirajá, Matheus, Eric, John,..
E acordei com acordes nos ouvidos.

Hoje sonhei com um Expinho assim, sem pontas e com rosas
E minha saudade é do tamanho de São Paulo.

São Paulo, SP, 09 de novembro de 2009



Continuamos com a ‘programação cultural, esta não pára. De exposições vimos, além d’OSGÊMEOS, a do Pequeno Príncipe e a do Museu Afro. Mestre Didi e suas obras cobertas de religiosidade e força, desenha-me um carneiro? Fiquei imaginando um carneiro do Zimbábue.
Mas não serão todos os carneiros, carneiros?

As pessoas daqui de início me assustaram. Não olhavam nos olhos pelas ruas, parecia solidão esse amontoado de gente. Mas não serão todas as pessoas, pessoas?
A 25 de março quando fui mais parecia uma canga manchada de praia, batik azul branco vermelho amarelo laranja roxo. Entrevero, caminhada difícil. Mas procurando se acha, bons presentes e baratos.
Também procurei meios de tornar a iluminação da caixinha melhor, e achei.
Quem tem boca anda em São Paulo.

Fomos assistir peças. Espetáculos com casas lotadas – rotina paulistana – de atores e outro de atores com bonecos, do Sobrevento. Fortes, bons! Na saída um convite: amanhã tem oficina de bonecos, passa lá. Tia Angela diz “é perto”. Lá fui eu.
E lá disseram, e eram cariocas e paulistas:


 




“Viajar de ônibus? Com bagagem?
Ai, dá preguiça só de pensar...
Apresentação para uma pessoa só?
Ai, que sofrimento! 
Aqui quanto mais ‘mils’,melhor!”

São Paulo, 08 de novembro de 2009



[ A CIDADE TODA ME ENGOLE
E EU SOU SÓ CAROÇO ]




São Paulo, SP, 07 de novembro de 2009



Tia Angela e tio Mário são tios emprestados que não devolvo, são mais amigos que tios de verdade. Duas pessoas que sempre gostei, desde pequena: tio Mário um trabalhador dedicado e alegre, que une mistério a conhecimento; tia Angela uma menina inteligente e sábia, recheada de cores por dentro e por fora e usando sempre um chapéu, elegante.




Hoje me levaram para conhecer e ver flores que eu não havia visto em Holambra – ao SEAGESP. E realmente, corredores e mais corredores de flores, vi muito mais que lá, de todos os tipos e sabores. Uma delícia caminhar com eles em meio às folhagens! E tia Angela a observar o grito “AMAREEELO!” dado pelo girassol. Ainda bichinhos de tecido feitos a mão, ainda vasos e velas e fitas. Restou-me trazer para casa um grupinho de pequeninas rosas, amarelas também, que sussurraram a me chamarem de lado.



À tarde fomos ver a exposição d’OSGÊMEOS, grafiteiros aqui de Sampa que ganharam o mundo. E como em BH com Diego, meu cérebro dilatou cheio de idéias e sensações confusas. Mexeu comigo fortemente, com aquele amontoado de realidade, loucura e leveza transpostos em poesia. E foi ali que vi meus próximos anos, próximos objetivos que reconheci cravados em mim. Saí em estado de choque, maravilhosa sensação de pés no ar, a procurar e encontrar outro piso.

Hoje o dia foi assim, só descobertas. E a vida seguindo seus passos com pressas e redemoinhos.

São Paulo, SP, 06 de novembro de 2009

Em uma estação de madeiras e pessoas a esperar o exato, acenei para cima: tio e tia, aqui estou. Com um sorriso vi que tia estava bem, apesar das dores constantes de cabeça e noites quase não dormidas, e que tio estava parecido-quase-igual com outro tio, um quase-pai. Perdemos-nos em seguida, nos achamos logo depois. E foi um bom reencontro, pessoas conhecidas após quase um mês de rostos sempre novos.

Fomos para a casa deles, e eu, aqui, sinto-me no extremo oposto exato dos locais por onde ando passado: tudo é grande, e há luxo, e estar ao lado não significa necessariamente estar com. Talvez muito pelo contrário por vezes. Mas haverá tempo para falar disto, o tempo me tem nas mãos nessa jornada.
Fomos, de carro, até a casa deles. As nuvens deixam buracos no céu, zonas de escape. Eu sou só olhos, assustada, observando o quê não tem fim.

À tardinha tia convidou para ir com ela a uma aula de Biodança. Vou quase todas as quintas, tem interesse em ir também? Disse que sim. E pegamos metrô junto a todos os tipos de gente, dos engravatados aos bêbados. Japoneses idosos, bebês de colo.

Lá chegando, tia, de nome Angela (ainda não a apresentei?) contou para as demais minha história: de onde vinha, para onde ia, por onde e como vou. E qual não foi minha reação ao ver os rostos se transformando, respingos de espanto, mas sozinha, com malas e tudo? É, queria fazer e fiz. E algumas com palavras repensaram sua vida, e achei estranho sentir-me como uma pedrinha jogada ao rio, rodando e rodando a água que tocou, círculos enormes. Contou-me tia Angela de um senhor que, ao ouvir sobre minha jornada, parou, pensou em silêncio um tempo e em seguida decidiu: “vou entrar em uma ONG!” Fiquei confusa e feliz, que tipo de reação é a que causo, e será que há diferença de pensamento entre quem me vê de povoados distantes e os de cidades assim, grandes lugares que chegam quase aos céus com suas colunas de cimento?

Para uns uma aventureira, para outros o para dentro, o espelho, o quê faço, eu ouvinte, com minha vida?
A aula transcorreu como experiência sensível, gotinhas de felicidade regadas por música suave. Transcorreu leve e contente como Dona Maria em seu fusca vermelho. Tudo que há de preocupação, se havia, se escapuliu pelas janelas de vidro. Mas como nesses dias eu sou só o presente e o querer, foi uma extensão de vida de interior.

 Foi emoção de rever, foi abraço de querer bem. E fomos embora sob os pés de outros, de volta ao metrô. Felicidade não buscada, mas sentida. Ou buscada, por isso sentida? Nem sei ao certo..

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Na estrada, de Mogi das Cruzes a São Paulo, SP, 05 de novembro de 2009

Hoje tenho-me a chorar no trem de tamanha felicidade em ter encontrado pessoas tão maravilhosas. Simples criaturas que me receberam como se recebem parentes distantes – em um dia Seu Betinho já tinha a me chamar de “maninha”. Ensinou-me tudo com uma modéstia e cuidado: como se escolhem laranjas e limões, pela casca lisa; como se prepara um bom tempero para salada. Mostrou-me o centro da cidade toda, explicando cada detalhe da mesma – sinto já saudades.


Ia eu apresentar em Mogi hoje, mas para não pegar trem e metrô lotados para a capital, por recomendação de Dona Maria, saí agora, no início da tarde. A linda senhora que não gosta de usar óculos me levou para a estação férrea em seu fusca vermelho, pega o vidro da janela que caiu na calçada, o mesmo fusca que me buscou ontem, quase dez horas da noite, na rodoviária. O mesmo que ‘empacou’ ontem, como ela mesma diz. Normal, empacar. Próximo a rodoviária, chamou um ou outro para ajudar a empurrar, “mas a luzinha não tá nem acendendo, deve ser a bateria” – constatou ela. Problema nenhum. Aos 75 anos saiu do carro, deu-me antes de tudo um abraço apertado recheado de sorrisos e pegou seu celular na bolsa. Com o número na cabeça, discou para o filho. “Oi, é que o fusca empacou, vim buscar a menina amiga da Marisa aqui na rodoviária, você pode dar um pulinho aqui?” Magno, o filho. “Ele é mecânico, conserta caminhão enguiçado, daqui a pouco tá aqui”. Enquanto esperávamos, contou-me que nem estava em casa. “Tava jogando carta!”, sorriu como quem sabe que é arteira, menino que brinca com fogo. Tiramos as coisas do carro, Dona Maria pegou o step que estava no banco de trás e colocou no lugar, lá na frente do fusca. Ia tão rápido que nem dava tempo de ajudar. “É que meu filho precisa mexer aqui embaixo do banco”.


Chegou o filho, simpático como a mãe. Depois de um abraço forte na mãe, “agora fica quieta que eu arrumo”. Ela obedeceu, em dois tempos sentou no cordão da calçada sem nem pedir apoio. Concordou com o filho que a marca da bateria era ruim, quando entrar meu dinheirinho eu compro outra. E ouviu as recomendações, apague o farol quando for dar a partida, terceira marcha para carregar a bateria.

Dona Maria todas as tardes vai jogar carta, e costuma só voltar tarde de noite. “Não levo dinheiro, ele vai só anotando lá. Hoje perdi e depois ganhei, trouxe ainda 19 contos no bolso!”. Ela e seu fusca vermelho, para cima e abaixo. Magno também tem um fusca, amarelo o dele.

Dona Maria teve filho cedo. Com 16 teve o Betinho, e a filha deste com 13 já esperava bebê, daqui a pouco serei tataravó. E eu, caminhando pela cidade para conhecer a região, indo ao mercado, parecia mesmo que já os conhecia há anos, sobretudo Betinho, que eu havia conhecido essa manhã e se tornara ao mesmo tempo amigo, mestre e irmão.





Não achei que felicidade pudesse transbordar assim, de relações tão curtas e de maneira tão silenciosa. Mas escorre água de meus olhos e aqui, no trem, meu coração se inunda de alegria em viver e conhecer tais realidades regadas de doçura e pureza.

Guararema, SP, 04 de novembro de 2009

Ele vende flores, e conhece todos os nomes. Acostumado a fazer esse percurso, ele e seu caminhão.

Aparentando ser garoto, tem mais de 40. É de estatura baixa, usa óculos, e protesta contra a quantidade abusiva pedágios quando se percebe que quase não se investe a verba. Realmente, em 184 km são quatro pedágios, cada um cobrando de dez a quinze reais, “quase o preço que gasto na gasolina”.

Ele vende flores. Joaquim, o nome. O perfume do caminhão, quando abre-se o fundo, é como aquelas praças floridas após chuvas rápidas, quero ficar por lá.

E entre paradas de entrega e conversas, viemos. Pagou-me um sorvete e fiquei sem graça – não me deixou ressarcir o dinheiro, fui eu quem convidou. E aqui me deixou na rodoviária de Guararema, onde aguardo o ônibus para Mogi das Cruzes.


“É hippie!”

 “Te digo que não é!”

Vieram perguntar, quatro meninas. “Quer salgadinho?” “É?”

Não, não sou.

“Ah, tá bom, tchau”.


Holambra, SP, 04 de novembro de 2009

Dinha é um doce! Nem menina nem senhora, chamo-a de Dona só por educação. Apesar de já ser avó traz consigo a juventude dos anos, elegante com seu vestido azul.

Conversamos bastante hoje, junto à sua netinha. “São os detalhes que constituem um bom relacionamento, está tudo nos detalhes, nos agrados cotidianos”.

Fomos à horta ali ao lado, na casa do vizinho. Uma área grande que usou para plantar, e é uma beleza seus montinhos de verduras de todos os tipos, e sem agrotóxico, tudo enfileirado e com verde de todos os tons.

De repente, início da tarde, toca o telefone. “Sua carona está saindo agora” – era Marisa quem ligava. Sim, minha carona de um amigo dela que transporta flores para Guararema, próximo a Mogi das Cruzes, “arruma suas coisas que estou passando aí”.


Ia dizer que não, que tinha falado com Dinha e ficaria até a manhã seguinte, pego ônibus para Jaguariúna e depois trem para São Paulo, a noite apresentaria no Casa Bela, restaurante de ontem, quem sabe o moço simpático e bonito de ontem estaria lá, poderia até rolar algum envolvimento.. Mas não falei. Ela havia se esforçado para conseguir a carona, e fui arrumar as coisas, é só um outro caminho dentre tantos possíveis, está ótimo também.

Dinha preparou-me um lanche, frutas e suco para a viagem. Um forte abraço, gostei de seu tênis, de suas coisas coloridas, gostei de você. Marisa me trouxe até o local de encontro com o homem do caminhão, ele para aqui, anote os telefones do pessoal de lá para ficares na casa de minha mãe até amanhã. Ela mora em Mogi.

Anotei. Abraços, quando vier já tem amigas por aqui.

Estou agora à espera do homem.

Holambra, SP, 03 de novembro de 2009



Há moinhos aqui, e o maior deles foi o que fui conhecer hoje cedo.

Tijolinhos, janelas quem lembram desenhos antigos,

e informações para turistas

(se soubesse que havia um guichê aqui.. no mapinha não indica!)


Ali ao lado há uma coleção de casinhas.

É um Parque Residencial onde moram só maiores de 60 anos

(determinação deles, que não queriam vizinhos barulhentos!)


No moinho, uma senhora puxou assunto comigo, Hanskle lobskt, o kank.. Cuma? – pensei. “Alguns são holandeses, eles conversam entre si nesse idioma. Muitos já esqueceram o português, por conta da idade, e resta a eles e elas falar apenas a língua materna”.

Por toda a cidade se vê senhoras e senhores de bicicletas, e lá vai uma, cabelos curtos branquinhos voando ao vento, como algodão quando se atira dos galhos. Anda rápido, com sua cestinha presa à bicicleta. Tot ziens!


ANJAS NO CAMINHO


Tenho que ir, as pousadas e hotéis aqui são muito caros! Tentei desde ontem falar com um pessoal de uma comunidade aqui perto, mas só terei o resultado amanhã. Mãe, o quê acha? Vou para Campinas e São Paulo, seguir viagem, não dá para ficar gastando aqui, não há gente nas praças para apresentar.

Pego as malas todas todas. Vou para o ponto. E pergunto a seu Mané da banca de revistas os horários do ônibus, sabe tudo Seu Mané, pessoa das mais simpáticas por aqui, ajudando a todos e todas.

Aí lá, sentada, indo, mas querendo ficar, lembrei de ontem, quando apresentei o Mundo Miúdo em um bar/lanchonete daqui. Tem rendido, essas apresentações! Conheço pessoas e graninha no chapéu. E lembrei das crianças que queriam assistir a todo instante, chamando pessoas das outras mesas, e lembrei de Marisa, uma moça/mulher simpática que foi a primeira a assistir, “é difícil ver trabalho tão bom de gente tão nova”. Ela disse também que trabalhava no Departamento de Cultura da prefeitura daqui de Holambra, e disse que passasse lá.

Ia demorar ainda um pouco o ônibus, Seu Mané o Depto de Cultura é pra onde? Lá, deixa as coisas aqui, querida. Fui tentar a sorte vestida de coincidência.



Pessoa maravilhosa, Marisa me recebeu. E em dois tempos ligou para inúmeras pessoas entre Secretarias de Educação, Cultura, pessoas jurídicas e amigos. “Aqui não temos verba, mas no que eu puder ajudar, eu ajudo”. E conseguiu um lugar para eu ficar essa noite e um bom lugar para eu apresentar o Mundo Miúdo.

Conversa animada no departamento, pessoas a perguntar, conversar e rir.

Fui até a casa de Marisa.

Ajudou a carregar o carrinho, contou-me sua história de vida, fazendo de tudo pela educação dos filhos. Contou de sonhos, livros e das comidas do marido, chef de cozinha, também pessoa adorável, que a agradava com seus pratos preferidos e a fazia sair do regime a todo instante. E os despedimos felizes pelo encontro.


Apresentei o Mundo Miúdo em um dos mais requintados restaurantes daqui, e meu chapéu nunca ficou tão cheio de notas altas. Depois vim para casa de Dona Dinha, que me recebeu de braços abertos, oferecendo tortas e bebidas. Dona Dinha é costureira, e o quartinho que estou é recheado de panos, linhas, moldes e traços. Parece o ateliê de minha mãe!


Holambra, SP, 02 de novembro de 2009

“A cidade das flores” – tenho-me aqui. E desejava ver flores na chegada, no entanto não as vi. Vi turistas, sapatos de madeira de todas as cores, música holandesa. Mas hoje saí para conhecer ao máximo a cidade, já que o hotel é caro e não ficarei mais de uma noite.

Fiz passeio turístico. Sim, destes de van, com uma moça falando no microfone à direita isso à esquerda aquilo. Aí vi flores, confesso que não muitas, porque “esses são produtores com pequena ou média propriedades, os de maiores não tomaram consciência ainda do turismo e não querem fazer parceria, aí não dá pra visitar”.


Cheguei aqui na cidade cedo, e que difícil é chegar aqui! De Belo Horizonte para Campinas, uma noite. Campinas para cá não há ônibus rodoviário, há de se pegar um metropolitano passando alguns quarteirões da rodoviária, “pegue taxi que daqui para lá é perigoso”. Não há chapéu que resista a tanto transporte! E rodoviária não há, foi o senhor da banca de revistas quem me deu as dicas.

Em Holambra o centro de informações ao turista fica na entrada da cidade. É meio lógico, e não é um problema para quem tem carro. Mas eu, com meus dois pés de sapatos coloridos, caminhando uns 30 a 40 minutos de ida e mais para volta, embaixo de sol quente, ao lado do asfalto e sem nenhuma sombra ou locais de parada nas laterais tive dificuldades! Mais uma vez pressão desceu, xinguei até a alma de quem teve essa infeliz ideia de por as informações tão longe. Mas cheguei, perguntei e soube. E voltei discutindo sozinha, vou-me embora dessa cidade.

Agora, quatro horas da tarde, comi uma espécie de panqueca aqui no ‘Martin Holandesa – Confeitaria’. Gostosa, de maçã, um queijo estranho e bacon. Não tão cara, refeição do dia todo. Diferente, uma novidade boa que encheu minha barriga.


Achava que a cidade fosse mais florida, mas são as pessoas que exalam flores e perfume com sorrisos a todo instante por aqui. Uma outra forma de embelezar essa cidade tão nova e que já é referência nacional, com turistas de todos os cantos, a clicar com suas máquinas modernas.

Belo Horizonte, MG, 01 de novembro de 2009

APRESENTANDO EM BH

ou

“ENTÃO PEGA SEU MATERIAL E TIRA DAQUI”

ou

“APRESEENTA! APRESEENTA! A PRAÇA É NOSSA!!”

Parque Municipal, domingo de manhã. A maior feira de rua que vi, equiparada ou maior que a Feira da Redenção em Porto Alegre. Gente por todos os lados, saindo dos becos, das ruas, das vielas das calçadas e dos carrinhos de mão. E lá vou eu, ali no meio, tentando não atropelar ninguém com minhas malas e carrinho e guarda-chuva – caso o Seu Pedro lá decida mandar uma chuvinha pra refrescar o povo.

Diego não pode vir, conseguiu um trabalho em cima da hora. Mas me indicou tudo, como chegar, como ir, onde fazer. E fui eu lá.

Chegando, arrumei as coisas, flor para lá, caixinha de som para cá, ovo escondido. Chegando, coloquei a roupa, e uma multidão foi se aproximando, sentando no chão e ficando próximo, em pé. E quando estava tudo pronto, de costas pus o nariz e veio um homem alto, grande, você não tem autorização, não pode apresentar, então pega seu material e tira daqui. Silêncio, eu já de nariz, tive o intuito de tirar enquanto o homem se afastava, o povo todo ali, a maior roda que já tive, eu imóvel, e começaram a reagir, não sai não, a praça é nossa, apresenta. Tive medo, e se me tirarem? Vamos com você, ajudamos a levar as coisas, foi o que me falaram e eu acreditei, com medo fui no embalo e apresentei Palitolina. Pouco depois a euforia da apresentação fez-me esquecer da tal autorização não tirada, e improvisava com o menino que comia coraçõezinhos, comendo com ele. Fim de peça, parabéns, bláblá, lá vem uma mulher forte de colete falar comigo com um papel na mão. Pensei ais, de todos os tipos e com todos os pontinhos nos ‘is’. Pensei é multa, ele me avisou e eu não fui. Pensei me ferrrei.

Ela foi extremamente educada, disse que ali prejudicava o percurso do trenzinho que percorre o Parque, e me deu o papel. Era o telefone dela, me ligue quando for apresentar, eu autorizo e indico onde é melhor para nós e para você. Alívio, e foi embora a mulher. Vieram algumas pessoas, algum problema? Estavam esperando para ver o que era, para ajudar em qualquer coisa, não deu nada, né?! Não, não deu. Guardei meu material, ovo sujo no peito, chapéu cheio de ‘incentivo dinheirístico’ e voltei pra casa, carrinho no meio do povo.

À tarde fui para outro local, a Praça da Liberdade, e crianças que haviam assistido pela manhã voltaram lá à tarde para me (re)ver. Coreto, flores, fotos. Ganhei junto com o chapéu balinhas e poesia, que postarei aqui mais tarde.

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Vídeo Incondicional


Belo Horizonte, MG, 31 de outubro de 2009


Por debaixo dessa árvore laranja, espaçosa e a fazer tapetes no chão
Esconde-se mistério algum.
Crianças coloridas,
grama perfumada das chuvas,
um cachorrinho com seus pelos de plumas
e eu.


Aqui nesta praça de nome que não me recordo
Aguardo a passagem das horas como quem espera um bolo, sentado em um banquinho ao lado do forno quente.


Tentei apresentar o Mundo Miúdo aqui perto
e disseram-me que não era possível, houve uma curadoria para o fórum, alguém passando o chapéu daria espaço a outros aqui no teatro, fora da programação.
Isso é um problema? – pensei em silêncio.
Mas engoli, calei e segui.


Tenho-me aqui, agora, a contemplar formigas.


E tão pequenina e breve estou, encolhida neste banco de cimento
Que, como útero, me guardo em mim.


Por debaixo dessa árvore laranja
Há um vento gelado a agitar as folhas que tilintam, faceiras,
E pássaros acima, a gritar para que a noite venha.


E agorinha veio um menino
uns dois anos, loirinho,
a me entregar uma flor pequenina, amarela e doce.
Fora o pai que me agradava com encantos delicados de filho
e fez que meu coração transbordasse em ternura.


Seguiram pela grama, filho e pai, a apontar topo de árvores
E eu fiquei aqui, um pouco mais amarela, pequenina e doce.

__________________________________

Fui para outro teatro, e também não consegui apresentar.
Aí, para fazer tempo ou ter alguma ideia, me vi a andar pelas ruas que me perco, à procura de algo que nem eu mesma sabia o quê.
Ouvi música, fui ver. Um bar. Ai ai, outra briga remexeu-se dentro de mim. Parei em um canto, olhei, olhei, e sem pensar entrei, a falar com o dono. Pode, não tem problema. Fui arrumar as coisas no canto das cadeiras empilhadas.
Arrumando, já vieram curiosos. O quê é isso? Foto? E logo veio gente assistir, abrindo o recebimento de meu mais novo companheiro: um chapéu vermelho.
Passei entre as mesas, se quiserem conhecer o trabalho.. Alguns foram. E entre vai-e-vens fiquei lá, tranqüila com minha caixinha.
Tempos depois, movimento mais nenhum. Aí arrumei tudo e fui para o bar ao lado, posso? Pode! Arruma, curiosidade latente, fui lá e falei, mesa em mesa. Veio um menino. Três rapazes. E mais, e mais.
No final estava contente com as conquistas, coragem variante e um pouco de dinheiro no bolso. Voltava para casa ou para um lugar que não sabia onde. E me chamaram, desculpe, o quê é isso, estamos curiosos. Dois rapazes e duas moças. Querem ver? Eu monto.
Apresentei. Gostaram. Atrevo-me a dizer que gostaram muito. Contato, nos falamos, fique mais em BH. Não posso, amanhã me vou para meus miúdos. Levou-me em casa, inocência minha em não perceber. Ou não querer notar, ou não querer.



SOBRE PESCARIAS

Se ele soubesse o quê é não acreditaria
O quê me dói, me cerca e arrasa é a sensação sempre presente de ser a caça, jamais caçadora. A que é escolhida, nunca a que escolhe. Nunca o anzol, sempre a presa.
E hoje, mais uma vez, caça fui.
Se ele soubesse que era isso, não insistiria em ficar
Porque é bela a força da paixão, mas há outras vírgulas que preciso tentar, aprender e errar. Outros pontos finais que tenho que dar. Outras exclamações e interrogações a buscar. E, como aprendi com uma grande amiga, muitos carneirinhos de ‘nãos’ a contar.

Cansada estou, caça caça caçadora.
E se não me arrisco a trabalhar isto em mim nesta viagem, não haverá coragem em lugar algum dentro de mim.
Vai, vai embora caçador
E deixe cadeados de mistério e anzóis tortos em minhas mãos perdidas.

Belo Horizonte, MG, 30 de outubro de 2009

Perdida em Belo Horizonte, mais uma vez. Está virando rotina! Minha orientação espacial que sempre fora uma derrota parece não tomar jeito. E hoje, após duas sessões assistindo apresentações de dança, fui para o lado errado, para bem longe. Noite gulosa de estrelas. Ruas vazias, parecendo escola pública em feriado prolongado, e eu andando sem rumo certo com a caixinha, pedestal, guarda chuva.
Então, lá longe, um moço que carrega pizzas, fui perguntar. “Vixe, tá longe, moça! É pro lado de lá” – e apontou para lá de onde eu havia vindo.
Meia volta, volta tudo.
Voltei pensando no que havia assistido, os grupos participantes de hoje no Fórum Internacional de Dança (FID). O primeiro, movimentos de coisa alguma, um subir e levantar, cair e torcer, assim, crus. Tédio. Ele falava.. ué, mas não era um espetáculo francês? O rapaz rindo porque caía em cena, junto com os amigos que estavam na platéia, e arrumando o cabelo o tempo todo. A moça deve ter ouvido na faculdade que deve-se deixar o rosto neutro, e por isso nem piscava. Dança contemporânea? Não, não, moderna! E eu lá, com meu pé formigando e com o pensamento em uma coisa qualquer longe daquelas paredes brancas.
O segundo, fui sem nem pensar, no embalo. Fila grande. E uma mistura deliciosa de dança, teatro e música, com atores/dançarinos/cantores que sabiam o que estavam fazendo ali, e, apesar de falar – com legenda, eles é que eram os tais franceses – diziam tudo sem dizer, sabor delicioso de descoberta.

Mas saí hoje com intenção de conseguir uma grana com o Mundo Miúdo, apresentar. Cheguei tarde no teatro, no outro não dava por conta do espaço.. Em bares! Após voltar tudo, mais para frente havia bares, botecos e afins. Andei. Andei. E andei. E quando cheguei lá, braços doendo, parei olhando para os bares, as pessoas. Respirei fundo, passa um carro. Passa outro. Passa a coragem, mas tão rápida que nem consegui pegar, correu como menino fujão da surra do pai. E aí segui em frente, fiz a volta e retornei para casa.

Merda!

Um dia ainda vou ter menos medo de ouvir ‘nãos’.
Vontade de comer um chocolate.
Vontade de uma paixão assim, sorrateira, só para brincar de viver.

Belo Horizonte, MG, 29 de outubro de 2009

APRENDIZ DE RUA


Hoje saí com Diego, fomos em uma favela aqui de BH onde ele desenvolve um trabalho dando aulas de circo para meninos e meninas. Por sorte minha, hoje foi um dia de apresentação em uma creche do outro lado da cidade.
Chega lá, oi para um, para outro, e todos na combi de Diego para ir ao local de apresentação. A combi tem nariz, de palhaço dá para ver que é. Tem cores, cama, isso parece uma porta de geladeira, com as divisórias, e é, e é.
Meninos todos atrás, com as pernas de pau, roupas, bola grande de isopor, malabares, e tudo o mais necessário ao espetáculo. Chega para lá, ai que chulé, bate a porta. E fomos.
A apresentação foi para crianças pequenas de olhos atentos, aquele ali é meu filho, disse Diego. Uma bela demonstração do trabalho realizado há anos com aqueles meninos/rapazes! Eu operei o som e tirei algumas fotos e vídeos para registro, e curti demais o espetáculo!


Na volta, retorna à combi, ai, não joga talco em mim! Olha, eu uso esse talco para me maquiar, não gasta, não. Chegamos e estavam todos grisalhos, quem vai pagar por isso? E limpar as roupas, cobertas de branco? Diego tem uma paciência enorme, um cuidado também especial com os meninos. Mas é preciso dizer não, é preciso.
Levou-me em casa, e foi aí que, em conversa cotidiana, fez minha cabeça abrir como pétala de rosa.
Falou de sua vida, que rodou toda a América do Sul de carro, trabalhando, 3 em 3 meses mudava de cidade. Fazia produção, apresentação e recebia a grana, cada qual em um mês. E explicou-me dos trabalhos possíveis em bares – BH é a capital do boteco, sabia?! É só ir, é só ir.
Fez-me ver possibilidades, inúmeras possíveis para quem trabalha na rua. E ensinou-me maneiras simples de viver disto, e viver bem, trabalho que pode ser encarado profissionalmente como outro qualquer, indo atrás de oportunidades e mostrando sua arte sempre que for possível.
Cheguei em casa, cabeça pesando de pensamentos novos e de novidades animadoras! Melhor coisa que fiz ter ficado mais aqui em BH, valeu só pelo dia de hoje, obrigado Diego, nos vemos por aí.


TROCA COM BONEQUEIROS

Hermes já havia dito que gostaria de conhecer mais meu trabalho, por e-mail, fuçando na internet enquanto eu morava em Salvador. E quando cheguei em BH mandei um e-mail, estou aqui, estás por aí? Estava. E divulgou quase para a cidade toda sobre o meu trabalho, minha presença por lá, amigo é para essas coisas, quando se precisa.
Encontramos-nos com outros dois bonequeiros, Rafael Sol e Mirian, e ‘trocamos figurinhas’. Rafael e Hermes trabalham muito com material reciclado, trabalho dedicado, diverso e bonito em linhas de garrafas e tintas! E Mirian mora na França, trabalha por lá e aqui só está de passagem.
Conversamos, fui presenteada com um instrumento musical feito por Hermes de canos, plástico de sacolas e borrachinha de dinheiro. Pretendo usá-lo em “Re-Bolando..”, faz um som ótimo de mosca!
Depois, um abraço Hermes e Rafael, valeu por tudo, fui com Mirian para o Mercado Central daqui. E fiquei muito animada com a variedade de coisas que vi, essa panelinha de pressão é feita com latinhas pelo senhor que tem catarata nos olhos, quase sem visão, são seus dedos que fazem o trabalho de ver. E almoçamos, comida deliciosa! Um abraço em Mirian, ficarei mais um tempo por aqui. Lá vou eu pelos corredores coloridos do mercado!


CHEGANÇA – de 26 para 27 de outubro de 2009

“Será tarde. Depois da meia noite, talvez. Eu posso passar a noite na rodoviária...”
“No, no há problema! Venha para cá”
Foi assim a conversa, entre português e espanhol nos entendemos bem por telefone. E mesmo quase sem nos conhecermos, cheguei na casa dele depois da meia noite: uma casa de bordas amarelas, com um ‘64’ a enfeitar o topo. Fui recebida, ele de macacão.
Marcelo, o nome. O outro da casa, Heder. E a gata, e a gata!

Tenho passado os dias aqui, com eles e com outros sujeitos animados, tatuados e bonitos que hora ou outra aparecem e que também trabalham na rua e no circo.

A Cia El Indivíduo, nome dado à Cia de Marcelo e Diego, é um grupo assim, já de há anos. Vi fotos e materiais, e tem excelentes trabalhos! E Marcelo confecciona malabares de todos os tipos, e trapézios, e bolas enormes, e os vende. Bela profissão, recheada de cores.

Hoje, datando ‘29’ no calendário oficial, foram para a Convenção de Malabares, encontro que reúne grandes feras. Eu resolvi ficar mais um tempo. Conhecer outros trabalhos e trabalhadores daqui, e a cidade que atualmente tem gotas por todos os lados.

Belo Horizonte, MG, 28 de outubro de 2009

À ESPERA DA ABERTURA DO MUSEU DO GIRAMUNDO

Hoje a saudade está doendo, como ferida aberta em dobra de dedo.
Hoje o dia todo está assim, cinza. Nublado, de cimento seco e calçada quente.
Hoje parece que nada agrada esse meu coração torpe, batidas atropeladas no peito branco.
Hoje tenho-me triste e sem destino nas ruas, e cansada, e cansada.
Ontem saiu um resultado, o vi e meu nome não estava. Nem o da palhaça. Nem o das trocas.
Hoje desanimei, porque tudo é na raça e na fé, e sem verba, de difícil caminhar.
Fiz as minhas contas, procurei praças, soluções baratas. Hoje há fumaça embaçando meus olhos, e tristezas salgadas de solidão.
E se me tenho na porta dos sonhos realizados à espera de que se abram, é porque há quase um sentido em meu peito arredio.
(Tento arrancar sorrisos de minha face morna).

SENTIMENTO PASSADO COMO NOITE QUENTE
ou
OS OLHARES BRILHANTES DE QUEM PARECE MORTO

Saí do Giramundo assim, com berros presos à garganta. Saí com um alívio quase doentio e belo em viver, em poder fazer tanto com meus dedos jovens.

Tudo lá no Museu do reconhecido Grupo Giramundo de teatro de bonecos é matéria viva: revigora. Tudo lá é assim, passível de beleza. Dos transfigurados aos mais reais, dos narigudos aos pequeninos – todos os bonecos guardam e carregam vida nos olhos. E o tempo dedicado a cada peça de arte aparece nos traços finos que definem, sem data, os anos de cada ser.

Dizer que eu previa tal sensação é fala fácil. Mas não imaginava ser tanta a magia, o respeito que senti ao presenciar tanto suor, força e criatividade reunidos em criaturas das mais variados materiais, tipos, técnicas e estruturas. Um mundo que gira em encantos e delicadeza.

Belo Horizonte, MG, 27 de outubro de 2009


Ela estava lá, quieta, translúcida, olhando para mim. Como duas labaredas. Como dois oficiais a entregar multas pela estrada de tiras amarelas. Estavam lá, os dois olhos invisíveis e incomunicavelmente imóveis. Como vertigem.
Olhavam-me entre os dedos. Os dedos mexiam, ela quieta. Ela soberana, só a refletir o avesso. Ele mexia, os dedos, os braços e os punhos. Dela, nem um movimento sequer. Intacta. Por minutos, estranha sensação de tempo dilatado. Para os dois: lá e cá. Os lados, os lados. Para cima e desce, movimentos perfeitos como pingo de chuva em folha de manjericão.
Que delícia ver quem realmente sabe fazer contacto com bolinha de resina! Como vertigem. Obrigado, Dimitri.

domingo, 1 de novembro de 2009

Poções, MG, 26 de outubro de 2009

LINHAS DE ‘TCHAU’


Leva sacola, leva leva.
Mochila, guarda-chuva, sapatos.
Leva fotos, leva leva.
E uma porção de recordações.


Vem aqui na casa de minha vó, ela quer te ver. Dar um “oi”, um “tchau”.
Um adeus também para Dona Maria:
“quando chegar lá na sua terra, dá um abraço bem apertado na sua mãe por mim, tá?!”
Um abraço nos meninos, choro leve.


Ônibus.
Andou um pouco e foi parado na esquininha.
“Espera um pouco, motorista, só um pouquinho”
Entrou Dona Bil.
Entre as fileiras das paltronas, veio ela, cabeça baixa, passos rápidos
No fundo do ônibus, onde eu estava com minhas malas,
deu-me a mão.
“Deus te abençoe, filha! Viaje com Deus!”
Amém, Dona Bil, Amém.
Voltou ela, obrigado motorista, o ônibus anda.


Ali na frente para de novo.
É o motorista, com uma garrafa de refrigerante vazia, foi até o moço que tirava leite das vacas.
Encheram a garrafa.
Seguiu em frente, leva leva.

Poções, MG, 25 de outubro de 2009

PEQUENOS VERSINHOS DE ESTAR

Embaixo da árvore, aguardo com meu ‘Mundo Miúdo’. Amanhã parto, e partir é nascer. Nem dor nem celebração de festa de calendário preso à geladeira, só um novo recomeço.
O vento em minha face nua faz fecharem-se os olhos, sensação doce de sobremesa de mãe.
Ali em cima jogam a bola azul e branca, ali embaixo passa uma moto com o menino agarrado ao pai.

Nesses lugares, pessoa e artista se fundem. Não sei onde termina uma e começa a outra, se é profissão ou vida, ou ambos, como necessidade vital. E nem sei se é paz a paz que sinto, ou conflito sempre, vivo e eterno. Só sei que sempre há como começar de novo, e tudo é passível de mutação – do sentir à forma de me comportar – nessa minha jornada. Antes de um “ser”, um “estar”. Um seguir em frente em constante observação.



Hoje pela manhã fui com Djalma à Poções de baixo, local de moradia daquelas moças que encontrei na estrada, depois da barragem. Lá havia uma grande família, animada e receptiva a me questionar tudo com os olhos. Mas, como de costume, foi a avó quem mais conversou comigo, mostrando-me tudo.
Simples, muito simples. Com histórias de amor a enfeitar as palavras, Dona Galdina (Diu) falou de seu casamento, uma visagem anunciada por Deus dias antes do encontro com o noivo. Falou dos dez filhos que teve, e mostrou um a um os netos presentes, dizendo os nomes. Disse do filho que teve e que fora levado por Jesus, que não foi por falta de reza que partiu, mas se Deus o queria com Ele, o quê podia fazer? Foi uma tal de doença de Chagas. Que sobreviveram esse tempo todo sem hospital, que agora tudo é muito bom, graças a Deus, que já foi muito difícil.



Enquanto ela falava minha garganta apertava, doía ouvi-la. Doía ver tudo aquilo, tão longe, tão deixado de lado, tão perto do lado de lá, do desinteresse da ciência, dos centros, das descobertas, das artes, até. Doía não ter o que fazer, nem falar, mãos atadas diante da realidade crua.
Mostrei a vovó, boneca pequenina, e acharam que era viva com seus olhinhos a piscar em suas mãos.


Nesse percorrer, tenho tido muitas histórias para contar, coisas que vejo e não sei direito o que fazer com elas. Talvez por isso eu tenho escrito tanto. Quem sabe escrever não é uma forma de deixar que as histórias gritem, se mostrando ao vento e ao tempo?



Seu Valdomiro

SEGUNDA APRESENTAÇÃO DE “RE-BOLANDO..” EM POÇÕES

Estava mais cheio do que ontem, os que já haviam assistido e outros, entre crianças, jovens, adultos e idosos. Muita gente esperando na porta, a se acomodar rente às paredes verdes do Centro Cultural.
Corrida novamente pela rua, chamando as pessoas, cumprimentando os senhores e senhoras das portas abertas das casas.
E, na apresentação, cachorrinho latindo, reações, risos gostosos e contagiantes. “Havia muito tempo que eu não via meu pai rindo assim”, cometou um após a peça. E fiquei emocionada, sorriso sincero também o meu.
Tem sido muito prazeroso apresentar. Cada vez mais sinto que tenho melhorado, brincando mais dentro dos números, curtindo cada segundo. Eu, por mim, não paro. Arrancando graça e achando graça dos acasos que me aprontam.
Quanto ao chapéu, no primeiro dia não deu nem um centavo. “Nunca teve nada assim aqui, a gente não sabia como era”. No segundo dia, de dois em dois reais, mais uma vez deu bem mais do que as apresentações na praça em Salvador, e as pessoas à noite passando aqui na porta de D. Maria para “dar um dinheirinho pra menina, que não é muito, mas é o que tenho, para ela seguir em frente”. Entendem que é um trabalho, não encaram como somente uma diversão para mim. E fico feliz por compreenderem.

VOLUNTARIADO, GRUPOS, TROCAS

“Você se incomoda quando não dá dinheiro no chapéu, moça?” Não – respondo sinceramente. “Seu trabalho é voluntário, moça?” Também não, respondo da mesma forma sincera.
Quando me falam de trabalho voluntário, sempre me arrepia a espinha. Entendo, pela forma de falarem, que este é feito por dois grupos: um que sabe algo e o faz, ou ensina, ou apresenta para o segundo grupo, os que não sabem e aprendem ou assistem. Essa premissa já me deixa mexida: como pode haver alguma pessoa nesse mundo que não tem o quê ensinar, ou como pode não haver interesse mútuo em aprender? Honestamente, acho difícil de crer.
Nos lugares que tenho andado, sempre há o quê aprender. De cada pessoa, independente da idade, vê-se um modo de vida, formas de se enxergar o viver, de reagir, e de contar histórias. Ensinamentos de culinária, de garra, de fé, de desenhos, de estradas.. Basta querer buscar.

Para mim, aquele que se coloca unicamente no primeiro grupo carrega consigo uma posição superior aos demais, conscientemente ou não. E é por isso que me incomoda o assistencialismo, a colonização como foi feita aqui nas Américas e a maioria da forma atual de ensino pregada nas escolas, como peças de quebra-cabeças prontas para ser encaixadas nos alunos. Como se não houvesse nada lá. Como se existisse uma verdade absoluta.
Se pretendo ficar mais dias em cada povoado que visito é, justamente, para que o tempo mostre a eles e a mim que há muito lá, também, a ser mostrado e ensinado.
E é por isso que faço trocas, não voluntariado. Porque o que mais me interessa é a moeda do conhecimento sendo passada, uma moeda que não pode ser medida, gasta ou
equiparada.

Moeda única em cada indivíduo, professor sempre, na estrada inconstante da vida.