Cheguei em Venâncio Aires, mas não houve como ficar. Na pousada indicada, a do centro, só um homem tomava conta, e com seus olhares estranhos levemente me levava ao quarto: uma cama de casal, dos locais mais abafados que vi, banheiro do lado de fora. O banheiro é aquele? É, é.
Tendo viajado o dia todo e sendo quase noite, tudo que eu queria era um banho, um local para relaxar. Mas entrando no banheiro não houve coragem. Era de um fedor descomunal, com pegadas de barro no chão, a pia de há dias, crosta de uso. Voltei ao quarto e passei a desconfiar da roupa de cama, com seus furinhos e sujeiras. A luz que acendi mal iluminava - era como aquelas de motel, que se liga para não se ver.
Tentei do celular falar com pessoas queridas, quem sabe assim me acalmo, quem sabe assim engulo mais esta até amanhã. Mas não pegava o sinal, maldita hora que resolvi desembarcar do ônibus aqui, pensei.
Tentei me acostumar com o cheiro, no quarto vizinho dormia o homem. Tudo cheirava a guardado, ao que não se move, tudo era fixo. E, saindo da pousada, perguntei se havia outro local, se era o único, e diziam que havia, mas era muito longe dali.
No meio da rua, cansada, suada, tomei uma decisão: chegaria hoje em Santa Cruz, 45min de onde estava agora. Se em sonho desejava chegar amanhã para uma última apresentação repleta de reencontros com pessoas queridas, optei por chegar em silêncio. Por mais de 20min chamei o homem que, não me ouvindo, permanecia a dormir. As últimas batidas foram como trovões na porta de madeira, não terei mais ônibus se não vieres, e lá veio ele com seus olhos estranhos a olhar-me inteirinha. Terei que ir embora, surgiu um imprevisto - não tive coragem de dizer a verdade, só queria sair dali.
Do dinheiro que paguei antecipado ficou com a metade, e eu que nem sequer sentei na cama, mas fique, não há de me faltar - pensei. Na rodoviária, silêncio e a moça do guichê - a última que sobrara - a avisar que o ônibus vem aí, é último também, ele passa no centro de Santa Cruz.
Sentada no escuro do banco com braços da rodoviária eu era só lembranças. Estava chegando ao fim minha viagem, dali a algumas horas era nova a fase que se iniciava em minha vida - este sonho que me acompanhou desde a juventude havia sido realizado, cedia espaço agora a outros, que já povoam a minha mente de estradas tortas.
E quando se está aonde se quer o tempo passa como aves que nem se vê mais as asas pela distância nos ares. Quando se está assim não há nada que amedronte mais que o chegar.
Estava feliz com o reencontrar, e de certa forma triste pelo parar. Mas sempre há o momento da pausa, o retomar de fôlego, o entrelaçar de braços. Sempre há o ponto no mapa que delimita o espaço, e diz fim, é aqui por agora.
Nas calçadas de Santa Cruz do Sul, ao descer do ônibus, o carrinho gritava em cada fresta que caía. Resmungava, tentava ficar. E no escuro da noite íamos em direção à casa de parentes. Acalenta, acalenta coração, e faz deste teu presente agora.
Chegando, o susto da tia. Já?? Não era amanhã? Já, cheguei.
O comércio aprumado para o Natal fechava suas portas e mais de 22h já eram, enquanto eu abraçava os tios e tia, as primas que me passavam com suas alturas e pés descalços.
Vendo-as depois de tanto tempo, crescidas e lindas jovens, vi o tempo a passar correndo em meus olhos escuros. É o tempo quem transforma os rostos, não os anos. Ele, absoluto, é quem dita quanto dura cada segundo, período que não condiz com os relógios, e que passa diferente por cada ser. E percebendo na minha viagem os 72 dias em que estive em companhia do acaso, vi que o entrelaçar de linhas do relógio é absolutamente confuso, e torpe, e por vezes falso. O tempo assim, visto em horas, é mera convenção de especialistas, ponto de vista dos relógios - como escreveu Mário, o Quintana. Meus poucos dias de viagem foram anos, décadas de vida. E chego mexida com tantas mudanças.
Dormi próximo às primas, com lençóis cheirosos. Dormi próximo à família que esperava encontrar há tanto, e nem conseguia acreditar em ali estar.
De manhã acordei cedo pelo hábito adquirido. Na casa com paredes levemente coloridas a faxineira, que vem uma vez por semana, me reconheceu, chamando-me pelo apelido de infância: “Nuni, como tá bonita! Veio da Bahia? Lá onde todos falam assim, arrastado, como o moço da novela?” Disse é, é, nem sabia de quem falava.
E próximo ao meio dia era eu quem esperava, ansiosa, pela chegada de minha mãe e irmão mais novo. Andava sem parar para um lado e o outro, será que está tudo bem? E ela, que durante todo esse período me esperou, veio faceira, e linda, sorridente com seus olhos azuis e com sua pequena sacola escura nas mãos.
Apresentei à tarde na praça, irmão Dudu enorme a carregar o carrinho com as malas, a ajudar na arrumação, a segurar a maleta. Primeira vez que viam, novidade ver a família gerada a assistir-me como palhaça, e a rir, e a vibrar comigo. Conhecidos e desconhecidos no mesmo lugar de sorrisos, e amigas, das mais antigas. E lá, enquanto eu apresentava e curtia os momentos, como criança a espiar pelos olhos recém abertos vi o olhar de orgulho de minha mãe.
Cheguei.
Cheguei, mãe.
E tenho-me cá a dançar uma valsa alegre com o tempo.