Hoje fui à aldeia com Onilson da FUNASA – pois é, lá é FUNASA e não FUNAI, fui descobrir hoje. De ônibus até Curitiba e de lá peguei carona para a tribo.
Fomos conversando, eu tranqüila e animada. Longa estrada de chão, e placas da prefeitura de Piraquara sempre a indicar: a aldeia é para lá!
Ânimo passageiro, o meu. Breve tensão momentânea de chegada e, lá, uma das cenas mais tocantes que vi durante toda a viagem.
Eram roupas. Muitas. Mais de 20 sacolas enormes, do tamanho das crianças. E índios. Via-se pela pele, pelos olhos, jamais pelos trajes. Escolhiam. Uma menina passava coberta e envolta por um arco de guarda chuva rosa, rendado, destes de filmes antigos. Mulheres olhavam blusas, saias e calças. Separavam seus sacos. Grupos de crianças descobrindo novas combinações.
Em torno, casas de madeira, uma só de barro, e uma escola com uma placa da fundação da escola, em 2002, pela Arquidiocese. A Igreja, a boazinha.. Bicicletas, carros estacionados. Afora os olhos e os olhares bonitos e puxados do povo indígena, nada os diferenciava. Nada dizia, ali, a olho nu: somos nós, índios, nada de sua cultura própria os destacava.
Não que eu esperasse encontrar uma tribo de índios nus a caçar com lanças no rio. Não que eu não soubesse que já havia ocorrido ali ‘processo civilizatório’, mas foi tal o choque que fiquei um tempo imóvel frente às roupas vestidas de índios.
Devo ter uma visão por demais romântica desses povos – pensei. Logo ali à frente veio o cacique, que depois vim a saber que era também pajé da tribo. Chegou com seu boné, relógio no pulso ao lado da pulseira de sementes e camiseta da seleção brasileira de futebol. Estava lá dentro esperando o início da transmissão. Eu, quieta, olhava.
Apresentaram-me a ele. Lembra? A moça que Andréia falou. Sabia. Só não sabia que viria hoje. Nem eu, Seu Marcolino, nem eu. É para apresentar, né? Pode ser agora, ali na escola?
Ui, que susto! Poder, podia, mas.. agora, nesse estado que estou? Fiquei nervosa, mistura de espanto com tristeza e com sentimentos que não sei definir. Disse sim sem querer dizer nada, só para espantar o silêncio. Fui pegar as malas no carro, o quê estou fazendo, eu nem devia ter vindo. Eu sou a ‘branca civilizadora’, eu sou a ‘branca civilizadora’, devia estar bem longe daqui.
As crianças conversavam rapidamente em tupi guarani, falavam ao mesmo tempo, alvoroço, já estamos na sala de aula, lugar indicado que também disse sim no impulso. Como eu ia entrar no estado de palhaça assim, eu sou a branca, como? Eu não entendia o que falavam os pequenos, o que comentavam enquanto me apontavam. Eu sou, eu não devia.. Estava quase chorando a esconder o rosto, tamanho nervosismo, e agora, e agora? Assustada.
Fiquei um tempo parada de frente para as duas malas, o tripé, a sacola do Mundo Miúdo onde estava o discman e o boneco de nariz vermelho, que não entrou nas malas e eu havia tirado da mochila, solto estava agora. Eu sou a branca, ai.
Parei.
Precisava colocar meus pensamentos em fila, por ordem na bagunça que acontecia em mim. 1- Já estou aqui, está feito. 2- Disse que apresentaria algo, as crianças estão esperando. 3- Não vejo como entrar no estado de palhaça assim como estou, coração não quer se acalentar.
O nervosismo fazia-me suar, e nem quente estava. Peguei o tripé, montei. Peguei a caixinha, coloquei em cima. Tentei pensar, caixa não, palhaça – palhaça não, caixa, não consegui, segui no impulso. Coloquei os bonecos, arrumei o som. Tudo pronto. Olhei tudo. Silêncio e tempo. Tirei o fundo do cenário da história: os prédios enormes, tive vergonha. Eu sou a branca, eu sou. Guardei-o – assim está melhor. Falei com as crianças, as que não entendiam direito o português recebiam tradução das demais, crianças de cinco a nove anos.
Apresentei.
Espiavam a história por todos os lados, por cima e por baixo da caixa. Falavam não-sei-o-quê, animados entre si e se assustando com a música que saía dos fones. O quê estou fazendo aqui, o quê?
Depois que todos viram tentei puxar assunto. Aí um disse: quero ver aquele – e apontou para o boneco de pano com o nariz vermelho. É pra já. Peguei-o, sentei em uma cadeira, coloquei-o no meu colo. Comecei a animá-lo, olhinhos atentos. Comecei a conversar pelo boneco, respondiam tudo.
Logo veio um e apertou-lhe o nariz. O boneco reagiu se protegendo (risos). Veio outro fazer o mesmo, fugiu ainda mais (risos). Aos poucos era o elo que faltava: eu já contracenava com ele e com as crianças como palhaça, ainda que sem o nariz e as roupas, improvisando reações e brincadeiras. Trocávamos, enfim!
Cantavam canções em português, o boneco pedia músicas em tupi. Abaixavam as calças dele e riam das nádegas fofas que o boneco escondia com suas mãos de quatro dedos. Risos, risos, meus e deles e delas. Veio o cacique, riu também e se foi. Troca, eu sou a branca, mas estamos trocando, um pingo de leve alívio repentino.
Quando acabou as crianças foram para suas casas com seus sacos de roupas. Eu guardei tudo e fiquei por ali, sentada em frente à escola, nos bancos de madeira. Chegou o professor, conversei, todos eles tem aula aqui, o cacique está acabando o ensino médio. Saiu. Chegou a diretora, conversei, eles são os índios mais conservadores do Paraná, todos os dias quando o sol se põe se reúnem para reza ali na casa de barro. Saiu. Chegou o cacique, conversei, vim para cá em 1991, doaram-nos as terras de uma chácara antiga, viemos da divisa com a Argentina. Trouxe mais umas 40 pessoas. Hoje tem mais, mas não chegam a 100. Disse “vou estudar” e saiu.
Eu fiquei.
Não tirei fotos nem nada filmei, não queria ser essa, não queria. Só fiquei, a olhar.
Aí então voltou o Onilson, estava no Posto de Saúde, eu disse vou-me embora com você.
Na volta vim pensando sobre o eu-branca, sobre o boneco, sobre a palhaça. Na volta vim pensando onde eu dormiria hoje. Onilson perguntou estás triste? Disse não, mas nem sabia. Nem sei, ainda.
Deixou-me em Curitiba e, depois de achar um hotel baratinho - destes de frente à rodoviária, vim ao Jardim Botânico. Lugar de brancos? Há lugar para cada qual? Nem sei, nem sei.
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